O livro oculto de Xerxenesky

 

AntonioXerxenesky©RenatoParada12
O escritor gaúcho Antônio Xerxenesky (Foto: Renato Parada)

Antônio Xerxenesky mergulhou fundo no estudo do ocultismo para escrever o livro As Perguntas, ótimo lançamento de 2017 que, assim como Neve Negra, de Santiago Nazarian, dá fôlego a um gênero moribundo no mercado editorial brasileiro, o terror. Com a ajuda do amigo e mentor Daniel Pellizzari, ele pesquisou textos de Aleister Crowley, Éliphas Lévi, Mircea Eliade e outros tratados sobre paganismo para dar corpo à história de Alina, uma doutoranda em religião que sofre com a visão de sombras e vultos. Para pagar as contas, ela trabalha, quase no piloto automático, como editora de vídeos institucionais em um escritório na região da Avenida Paulista, em São Paulo.

Em entrevista ao blog, Xerxenesky conta que sempre sofreu do mesmo mal de Alina: via, a contragosto, resíduos de sonhos, imagens e sombras. “Essa foi a inspiração autobiográfica do livro. Mas, ao contrário dela, não cogito que isso é algo sobrenatural”, diz o autor, que nasceu em Porto Alegre e mora na capital paulista. As Perguntas é seu terceiro romance. Antes, escreveu Areia nos Dentes (2010) e F (2014), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, além de dois livros de contos. Ao flertar com gêneros populares, como a ficção científica e o terror, Xerxenesky assume o risco de ser um intruso na festa da literatura brasileira, onde o realismo e o academicismo predominam.

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“A literatura brasileira, de modo geral, quer ser bem vista, quer ganhar prêmios, ser matéria de teses de doutorado, e para isso é preciso trajar um terno completo. O terror nunca usa terno completo. O terror é a roupa esfarrapada. O realismo, um vício da literatura brasileira, pode se tornar uma prisão, e todos meus livros foram tentativas de fugir disso”, afirma.

As Perguntas
“As Perguntas”: terceiro romance de Xerxenesky

No repertório de Xerxenesky, formado em Letras e mestre em Literatura Comparada, cabem tanto filmes italianos de terror dos anos 1970, de diretores como Lucio Fulci e Dario Argento, quanto músicas de bandas de metal experimental, a exemplo de Sunn 0))) e Agalloch. Não nega que cultiva um “fetiche pelas dark arts”. Embora não tenha medo de fantasmas, preocupa-se com a infelicidade de sua geração, que passou dos 30 anos, continua insatisfeita e tenta resolver tudo à base de remédios, e teme o surgimento de um fascismo cultural no Brasil.

Leia a seguir a entrevista que fizemos com o escritor.

Um dos aspectos assustadores em seu livro As Perguntas é a sensação de vazio, de despropósito que ronda Alina, a personagem principal. Por que nossa geração parece tão perdida?
Antônio Xerxenesky:
Somos uma geração que supostamente teria os “grandes problemas” resolvidos. O mundo está completamente conectado, não há mais guerras no horizonte, vivemos numa democracia (apesar de tudo). Parece que os grandes conflitos ficaram no século 20. E, no entanto, continuamos infelizes — profissionalmente, pessoalmente. Apesar de todos os remédios que a indústria farmacêutica nos oferece. As perguntas foi o primeiro livro que escrevi que se passa nos dias de hoje. Portanto, pensei que este problema era inescapável e deveria ser encarado de frente. Como preencher esse vazio?

Você tem alguma ideia?
Não. Escitalopram (15 mg)?

Você sempre gostou do gênero de terror? O que atrai você em filmes e livros sobre ocultismo e sobrenatural?
Sempre fui entusiasta de terror, desde que tive coragem de ver os primeiros VHS de terror sozinho à noite. Há algo que me agrada demais no gênero que é uma espécie de liberdade que os diretores têm. Se você assistir a um filme de terror dos anos 1970, parece que ele segue regras estéticas e narrativas totalmente diferentes dos filmes realistas. Claro que o cinema hollywoodiano produz filmes de terror em massa que são uma porcaria, meticulosamente calculados para agradar o máximo de pessoas, com jump scares idiotas. Mas os bons filmes de terror são sempre imprevisíveis. Penso, por exemplo, em The Beyond, do Lucio Fulci, que está sempre puxando o seu tapete, um filme que mostra uma angústia metafísica inesperada para algo com tanto gore.

Assim como o filme Suspiria, do Dario Argento, que você cita no livro. Nesse caso, existe uma estética extravagante, além da narrativa, certo?
Extravagância é uma palavra perigosa, pois também aponta para o ridículo, que não é o caso. Eu diria, talvez, “artificialidade”. Mas nem é tanto isso que me interessa, e sim uma certa atmosfera de angústia metafísica. É muito diferente, por exemplo, da tradição de terror naturalista norte-americana, que começou com os slashers e descambou nos filmes de tortura (Jogos Mortais, O Albergue). Esse tipo de terror me interessa muito pouco.

O medo de uma vítima desses filmes é o medo da violência física, de ter a perna serrada, a cabeça cortada. O medo de um filme como The Beyond, Suspiria, Mansão do Inferno, Dellamorte Dellamore é a possibilidade de estarmos no inferno, de existir forças extraterrenas comandando nosso destino. Outro exemplo ótimo é Kairo, filme japonês do Kiyoshi Kurosawa, cujo grande “monstro” é a solidão. Esse filme, com suas figuras sombrias, foi uma grande inspiração para mim.

Meu interesse não veio só do cinema de terror, mas também da música. Como muita gente nascida nos anos 1980, cresci com o synthpop sombrio de nomes como Depeche Mode, que foram claramente influenciados por uma cultura gótica, e depois passei a me interessar por vários outros gêneros sombrios, desde o pós-punk da Siouxsie & The Banshees até bandas de metal e post-metal como Sunn 0))) e Agalloch. E parte do que me atraía nessa cultura era uma fonte comum, um fetiche pelas “dark arts”, pelo caminho da mão esquerda.

Por que tanta gente torce o nariz para o terror? Não vejo, por exemplo, muitos livros na história da literatura nacional dedicados ao gênero. Será que temos medo de tocar no assunto?
A literatura brasileira, de modo geral, quer ser bem vista, quer ganhar prêmios, ser matéria de teses de doutorado, e para isso é preciso trajar um terno completo. O terror nunca usa terno completo. O terror é a roupa esfarrapada. Eu acho que o realismo, um vício da literatura brasileira, pode se tornar uma prisão, e todos meus livros foram tentativas de fugir disso. Se são bem sucedidas, a história é outra. Sei que, por escrever obras que flertam com gêneros populares, muitas portas estão sendo fechadas para mim.

Ao mesmo tempo, meus livros muitas vezes não se conectam com o fã hardcore de literatura de gênero. O próprio As Perguntas frustrou muitos fãs de terror, em especial pelo final, que muita gente criticou por deixar tudo no ar. Para mim, não existia outro final possível: a história é uma trama fechada de 24 horas, do nascer do sol ao nascer do sol, e é um arco que vai da crença no racionalismo para a incerteza total que nada é capaz de resolver, como se uma ferida fosse aberta no coração da protagonista e nada poderá fechá-la. A ferida da dúvida.

A história que eu quis contar é a história de um mergulho na angústia, um salto no abismo, e no abismo não há resolução. Portanto, meu livro é de terror e não é ao mesmo tempo. Todos meus livros são animais estranhos, como uma capivara com cabeça de foca e barbatana de tubarão. Fica entre um gênero popular e uma literatura mais experimental. Tem gente que vai gostar, tem gente que vai achar um lixo. Eu não ganho dinheiro com o que escrevo, então estou condenado a escrever apenas os livros que eu realmente quero escrever.

O mercado editorial brasileiro é muito conversador? Por isso, fecha as portas para esse tipo de gênero? 
Não dá para generalizar, também. Estamos cada vez mais parecidos com os americanos, tudo se encaixando em nichos bem demarcados: “literatura séria”, “YA” [livros para o público juvenil], “fantasia”, “policial”. Eu me interesso pelos livros que estão nas fraturas, que não se encaixam.

Que tipo de leitura você fez para escrever As Perguntas?
Tenho um grande amigo, também escritor, chamado Daniel Pellizzari, que sempre foi, para mim, uma espécie de mentor. Ele me alimentou de leituras, filmes, músicas ao longo de todo esse período. Foi quem me apresentou o black metal e foi quem me deu todos os livros “obrigatórios” de ocultismo, a biografia do [Aleister] Crowley, tratados de Éliphas Lévi, livro do [Ronald] Hutton sobre o ressurgimento do paganismo e do Wicca, Mircea Eliade.

Na pesquisa, li material demais e, quando chegou a hora de escrever o livro, corria o risco de querer “mostrar que eu fiz a tarefa de casa”, isto é, encher de discussões sobre ocultismo. Numa primeira versão, havia muito blá-blá-blá sobre o assunto que parecia querer exibir a minha pesquisa. Acabei cortando quase tudo.

Você já passou por alguma experiência sobrenatural? Qual a sua relação com religião?
Não. Quer dizer, eu tenho o mesmo problema de Alina, várias vezes acordo gritando porque enxergo esses resíduos de sonhos, sombras, imagens. Essa foi a inspiração autobiográfica do livro. Mas, ao contrário dela, não cogito que isso é algo sobrenatural. Como ela, sou de ascendência judaica e fui batizado na igreja católica, mas nunca segui a religião, sequer fiz qualquer outro rito. Porém, sou um racionalista cético, por bem ou por mal. Não consigo evitar.

O que mais te assusta no mundo de hoje?
No Brasil, o risco cada vez maior de cairmos num fascismo cultural.

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