O sertão pop e violento de Cangaço Novo. Uma série made in Brazil

Os irmãos Vaqueiro na série Cangaço Novo

Cangaço Novo, no streaming da Amazon Prime Video, é das melhores séries que vi neste ano. E tem, sem dúvida, a melhor atuação também. Não a do protagonista, Ubaldo, mas a da irmã dele, Dinorah, uma interpretação explosiva da atriz e cantora Alice Carvalho.

Para evocar a linguagem dela: “Porraaa, que série foda!!”

O sertão de Cangaço Novo, ambientado no interior do Ceará, na fictícia Cratará, poderia ser locação de faroestes aos moldes de Sergio Leone e Tarantino. A força dos diálogos, atuações, cenas de ações me lembrou o impacto causado pelo filme Cidade de Deus em 2002.

Criado por Mariana Bardan e Eduardo Melo e dirigida por Fábio Mendonça e Aly Muritiba, Cangaço Novo está entre as séries mais vistas no canal de streaming em dezenas de países no momento, incluindo, claro, o Brasil.

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A série mostra a ação cada vez mais profissional de assaltantes de banco no interior de Ceará (na verdade, a maioria das cenas foi gravada na Paraíba), em referência aos grandes assaltos a bancos que eclodiram no Nordeste brasileiro nos anos 1990, quando a expressão “novo cangaço” estava na boca da imprensa e de agentes da segurança pública.

Ubaldo (Allan Souza Lima), bancário que vive em São Paulo, é forçado a retornar ao sertão nordestino em busca de uma herança que poderá mudar a vida de seu pai adotivo, que está internado na capital paulista.

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Ubaldo é filho de um lendário cangaceiro da família Vaqueiro, mas não pretende reatar os laços do passado. Em Cratará, ele reencontra as irmãs e familiares e, aos poucos, desenterra sua história ao mesmo tempo em que ingressa no mundo do crime involuntariamente.

Em época de eleições, a cidade vive uma convulsão social, com o prefeito tentando a qualquer custo se reeleger com promessas, santinhos e falcatruas, de um lado, e os opositores de outro, aliados e financiados por um grupo criminoso que bota o terror no sertão, liderado por Sabiá e seus capangas.

Alice Carvalho no papel de Dinorah, em Cangaço Novo

Quem rouba a cena entre os criminosos é a destemida Dinorah, irmã de Ubaldo, em uma atuação brilhante da atriz, escritora e cantora potiguar de 27 anos Alice Carvalho, a mais arrojada da gangue. Ela fala o que der na telha e tá sempre querendo dar um “pipoco” em alguém, é decidida, divertida e amorosa a seu jeito.

As duas irmãs, Dinorah e Dilvânia (Thainá Duarte), têm um tanto da força de sertanejas das irmãs de Tordo Arado, livro de Itamar Vieira Junior que se tornou best-seller nacional.

A história evolui num sertão quase mágico, em um cenário que se assemelha ao sertão de Baile Perfumado e Árido Movie. O drama social e familiar se mistura a cenas de ação que estão entre as melhores já filmadas na cinematografia nacional. Sem perder a ternura em cenas em que o rompimento de relações, a desconfiança e os acertos de contas com o passado conduzem para um ritmo mais cadenciado e emotivo.

Nordestern: o gênero do cangaço no cinema nacional

Assim como em Cangaço Novo, o sertão e os cangaceiros possuem um lugar de destaque na história do cinema brasileiro. Sob diversas perspectivas, já foi seco, duro, pop, mágico, romântico, político. Por mais que alguns ortodoxos acadêmicos torçam o nariz, foi fartamente usado a serviço também do entretenimento, assim como o faroeste dos EUA há tempos assume sem medo de soar comercial.

Em entrevista ao jornalista Marcos Augusto Gonçalves, da Folha, Mariana Bardan e Eduardo Melo, criadores da série, não escondem o uso da violência como arma estética e de entretenimento:

“É o espetáculo do terror. Como os assaltos acontecem à luz do dia e podem durar até uma hora, realmente a violência e o terror são parte do método, que exige força bruta. Se a gente não retratasse esse impacto, a gente ficaria desalinhado com o que acontece. E isso vem também com o gênero de ação, o western e o nordestern. Tem aí um tom acima, que faz parte do gênero, que exagera alguma coisa para se personificar.”

Eduardo Melo, um dos criadores de Cangaço Novo, para a Folha de S.Paulo

“Se a gente não for violento, a gente se descola muito da realidade. E ainda que seja entretenimento e não um documentário ou um tratado sobre a realidade, a gente se utiliza dela para dramatizar mais as coisas dentro da ficção.” 

Mariana Bardan, autora da ideia inicial do projeto e uma das criadoras da série

Lembro do impacto que Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, causou em 2002 entre críticos e público sobre a apropriação da pobreza e sobretudo da violência com o verniz do entretenimento. Os detratores do filme de Meirelles chamaram aquilo lá de “estética da fome”. Pra mim sempre foi uma bobagem essa discussão.

Deus e Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha (1963)

Desde pelo menos 1953, quando os estúdios Vera Cruz, num movimento de implantar no Brasil uma “Hollywood brasileira”, lançaram O Cangaceiro, de Lima Barreto, se dá a busca por fazer do sertão e dos cangaceiros um espetáculo para o público, muitas vezes copiando a fórmula, os trejeitos do gênero western e exagerando no tom de propósito. Não à toa, o crítico Salvyano Cavalcanti de Paiva cunhou o termo “nordestern”.

Mais tarde, nos anos 1960, em contraponto ao cangaço de Lima Barreto, Glauber Rocha faz do sertão um ícone de sua cinematografia, em um libelo contra a opressão do povo brasileiro. Primeiro com uma verve revolucionária e utópica em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), depois no desalento de Terra em Transe (1968), quando a crença revolucionária esmorece frente à escalada do regime militar no Brasil.

No universo de Glauber, a figura do cangaceiro e do sertão aparece com um forte viés alegórico, de questionamento à opressão do sistema contra os miseráveis. Os discursos, o transe, os elementos barrocos de sua obra transformam a caatinga num palco político.

A utopia do sertão que vai virar mar, elemento-chave nos filmes de Glauber Rocha, apresenta-se também em Cangaço Novo. Talvez de forma menos esperançosa, mas como um alívio para a dureza da vida sertaneja.

Baile Perfumado, filme precursor do Novo Cinema Pernambucano

Num dos momentos mais singelos da série, Dinorah diz ao namorado que nunca viu o mar, que não liga muito pra isso, não. De repente, na secura do sertão, aparece um lago onde os dois vão nadar, um refúgio dentro do caos. Ali vemos um breve momento de paz e melancolia nos olhos de mel de Dinorah, que é interrompido logo ao ela saber que o açude pertence a um político da região.

Vejo Cangaço Novo como mais um representante, ainda que distante, desse movimento que teve início no cinema nacional no meio do século 20. Posiciona-se mais livremente próximo do Novo Cinema Pernambucano, que deu origem a obras-primas a partir do fim dos anos 1990 como Baile Perfumado, Cinema, Aspirinas e Urubus, Árido Movie, O Céu de Suely, entre outros.

Um olhar violento, pop e dramático do sertão brasileiro. Um cinema de autor ainda que encaixotado para o consumo das massas, dentro e fora do Brasil.

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