
Em tempos de coronavírus, com o mundo confinado em casa, a Netflix lançou na semana passada o filme espanhol O Poço em seu serviço de streaming. Pode ser um bom momento para refletir sobre nossa realidade. Assim como pode ser arriscado oferecer um conteúdo tão brutal num momento sensível.
O Poço (El Hoyo, no original) é uma alegoria do nosso sistema de classes e do darwinismo social. É uma crítica ao capitalismo e como ele corrompe a pureza congênita (será?) do ser humano. É também um bom entretenimento: um filme de terror com conteúdo.
A história é simples: em um mundo distópico funciona uma imensa estrutura que parece uma prisão vertical, sendo que cada cela ocupa um dos mais de 200 andares. Duas pessoas convivem em cada andar, que tem cama, pia e banheiro – e só. Alguns são criminosos, outros são voluntários que passam pela experiência em troca de uma recompensa.
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Na parte central dessa estrutura, no meio dos andares, uma base de concreto circula de cima a baixo como um elevador. Sobre essa base há um banquete preparado pela administração do lugar. Um banquete mesmo: com lagosta, bolos de festa, peru, escargot.
O jogo de convivência é o seguinte: quem está nos andares de cima tira proveito de um farto banquete, enquanto os que estão embaixo ficam com as sobras. Lá no fim do poço, não resta comida.
Em teoria, a comida é suficiente para todos que estão na prisão, mas os mais abastados se alimentam além da necessidade, deixando os demais sem uma migalha.
Atenção: conto mais sobre o filme a partir daqui, há spoilers adiante.
O que o filme O Poço quer nos dizer?
Que a ganância do ser humano é irrefreável e que vivemos em um sistema que estimula a violência e a selvageria.
A visão do diretor Galder Gaztelu-Urrutia em seu primeiro longa-metragem incomoda, embora pareça, às vezes, um tanto ingênua nas metáforas da vida. Nem tudo é tão simples assim.
O protagonista de O Poço se chama Goreng (interpretado pelo ator Ivan Massagué). Em busca de uma grana para seguir com seus estudos, ele aceita ingressar no sistema. É um voluntário. Quando é jogado no poço, Goreng não tem ideia em qual andar vai parar. Após um mês, caso resistam, os confinados são transferidos para outros andares.

Sua primeira experiência é ao lado do companheiro de cela Trimagasi (Zorion Eguileor), um veterano do sistema, um sobrevivente que está há meses dentro do poço e que acha tudo “óbvio”. Ele explica para Goreng as regras de sobrevivência: “ou você come ou será comido”.
Cada integrante do sistema tem direito a levar um objeto. É simbólico que Goreng escolha o livro Dom Quixote para se distrair no confinamento. Goreng é um idealista, que chega com a vontade de transformar o modelo. Por outro lado, Trimagasi é um realista, que leva uma faca afiada para lhe ajudar nas intempéries.
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Essa é apenas a primeira fase da jornada do nosso protagonista. À medida que os meses passam, ele vai dividir cela com outros tipos. No início, ele tenta negociar com os outros ocupantes uma solução mais razoável: por que cada um não come apenas uma porção para que todos tenham o que comer? É chamado de comunista lá dentro e hostilizado.
A mãe desesperada em busca do filho
A figura da jovem Miharu (Alexandra Masangkay) é central no terror O Poço. Em vez de ficar em sua cela, ela transita sobre a estrutura de concreto onde fica a comida com a justificativa de que está em busca do seu filho. Ela se comporta como se fosse uma fera enjaulada, com um instinto de sobrevivência de um animal.
Mas Goreng enxerga nela uma migalha de bondade que ainda resiste na violência que tomou conta do seu ser. Por isso, tenta ajudá-la. E entender quem é aquela brava guerreira que sobe e desce na estrutura e enfrenta quem vier pela frente.
Enquanto isso, Goreng tem um plano para desafiar a administração do lugar e enviar uma mensagem para quem comanda o topo da pirâmide. Ao lado de Baharat (Emilio Buale), seu novo companheiro de cela, ele pensa em controlar a porção de comida de cada um para que, na última cela, reste ainda um prato intacto. Para isso, posta-se sobre a mesa e entra em conflito com a maioria dos detentos, ao tentar, na base do diálogo ou da violência, conscientizar todos.
Uma reflexão sobre o final de O Poço
Você jogar pessoas dentro de um ambiente fechado e deixar que elas se matem lá dentro não é exatamente uma novidade no gênero do horror: o filme canadense O Cubo (1997) e a sequência de Jogos Mortais (2004) são dois exemplos que unem confinamento, sobrevivência e uma estética de game, com regras e um desafio.
O que diferencia O Poço, por outro lado, é a clara mensagem política e social. O entretenimento, o jogo, está lá (sem isso, aliás, a Netflix não se interessaria por essa produção), mas, além disso, há uma reflexão.
Em um universo corrompido, em que o ser humano esqueceu de valores essenciais como cooperação, solidariedade e bondade, aparece, no final de O Poço, a filha de Miharu. Uma garotinha de semblante calmo, imaculado. Mesmo vivendo em meio ao caos, ela parece imune aos solavancos da vida. Ela representa a inocência do ser humano, a esperança de que nem tudo está perdido.
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