
Comentar, nos tempos céleres atuais, sobre uma série do ano passado é quase como falar de um filme mudo dos primórdios do cinema. Mesmo assim, vou ser antiquado e dar meus pitacos a respeito de The Night of. Afinal, a regra é simples: gostei e quero falar bem de uma série legal no espaço que eu criei basicamente para mim mesmo.
Não que seja genial no sentido de reinventar a roda, mas é muito bem-feita e gostosa de assistir. Para quem gosta, claro, de suspense, histórias de tribunal e dramas prisionais. Um dos criadores de The Night of é o escritor e roteirista Richard Price, um cara que olha para a periferia dos EUA, retratando imigrantes e párias da sociedade, e extrai dali histórias e diálogos sensacionais. Leia Vida Vadia, livro de sua autoria que se passa no submundo de Nova York. Recomendo!
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Parte desse ambiente é o pano de fundo da série da HBO que foi ao ar em 2016. Nasir Khan é um jovem de 20 e poucos anos, de origem paquistanesa, que tem a cara e o jeito do bom moço. Assim começa a trama. Ele é convidado por amigos a uma festa que promete. Pega o táxi do pai sem pedir permissão, esquiva-se da mãe ao sair de casa e mergulha na noite de Nova York.

Ao passear com Nasir dentro do carro, com a câmera espiando os retrovisores, impossível não pensar em Taxi Driver, de Martin Scorsese, nas ruas esfumaçadas percorridas por Travis (Robert De Niro) como se fossem o caminho para o inferno. Como Nasir não sabe como desligar o sinal de táxi em operação, passageiros sinalizam e entram no carro. Ele expulsa dois deles, explicando que não está disponível para corridas. Entra, então, uma mulher e senta no banco traseiro. Diz que quer ir para a praia. Praia em Nova York, ele pensa?
Começa o calvário de Nasir.
(Alerta de spoiler: vou revelar alguns trechos do começo da série a seguir, mas prometo não estragar a sua noite).
O primeiro episódio, que nos conta como foi essa noite, é uma obra-prima. Não perca um detalhe porque todos eles terão um significado adiante. Entregue ao encanto da garota como presa fácil, Nasir estaciona o carro na beira do rio (a tal praia), aceita seguir até a casa dela, toma ecstasy, cheira cocaína, brinca com uma faca afiada nas mãos de fincá-la entre os dedos e faz sexo. Depois dorme. Acorda com uma tragédia diante de seus olhos.
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Eis o ponto de partida que se desmembra numa série intrincada de consequências. Nasir é interpretado pelo excelente ator inglês e rapper Riz Ahmed, de origem paquistanesa assim como seu personagem. Sua expressão jovial e inocente do início da série transforma-se em melancolia, depois em desilusão, até explodir em raiva e atos de violência.

Uma trajetória tão avassaladora quando a do personagem Malik, um árabe engolido pelo sistema prisional francês, no incrível filme O Profeta, de Jacques Audiard. O contraponto de Nasir é seu atrapalhado advogado de defesa, John Stone (John Turturro), que anda sempre de chinelos porque seus pés sofrem de um incurável eczema. A veia cômica de Turturro dá à série um respiro que corre paralelamente à desgraça de Nasir.
Ele tem a decisiva companhia da Chandra (Amara Karan) na árdua tarefa de combater as arbitrariedades cometidas contra seu cliente, num quadro em que a justiça americana, a intolerância racial e o sistema prisional também estão em juízo.
The Night of bota a mão na ferida de questões delicadas da sociedade americana e faz um implacável estudo da natureza humana.
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