O Menu e Triângulo da Tristeza: o discreto charme da burguesia

O Menu, disponível no Star+, lança olhar cru para o êxtase da gastronomia

Emprestei o título acima do Luis Buñuel para comentar, com o mesmo sarcasmo que ele adotava, dois filmes que vi nos últimos dias, O Menu e Triângulo da Tristeza, o primeiro disponível no Star+ e o segundo no Amazon Prime. Ambos se conectam por espiarem pelo mesmo prisma o comportamento da elite atual, a pretensão de suas realizações, os modos imorais e a exuberante jaula blindada onde seus integrantes vivem aprisionados.

O Menu celebra o jantar, os foodies e a era do chef celebridade com um sarcasmo que nos faz rir e nos entristece. A pergunta que me veio quando subiram os créditos foi: a que ponto a humanidade chegou? E o pior é que, apesar de ser uma abordagem escrachada do diretor Mark Mylod, o mesmo da série Succession, parte da história poderia facilmente ser a mais pura realidade.

Em O Menu, um jovem casal elegante (interpretado por Nicholas Hoult e Anya Taylor-Joy) viaja para uma ilha remota para provar as criações inventivas do chef Slowik (Ralph Fiennes), um desses cozinheiros que são tratados como divindade pelos ávidos seguidores. Ele apresenta os pratos como se fossem histórias, sempre antecedidos por uma encenação de mau gosto.

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Ao lado do jovem casal Tyler e Margot, se juntam à mesa endinheirados do mercado financeiro, com passado marcado por corrupção, uma crítica gastronômica cheia de empáfia, um ator que já teve no passado seu momento de fama e outros clientes do mesmo calibre. Todos aguardam o jantar como se fosse a celebração de uma missa. E o chef Slowik, sem esconder a vaidade, assume o papel do papa da gastronomia. Humor e terror se misturam no microcosmo criado por Mylod.

Eu nunca fui ao Noma, o restaurante dinamarquês do chef Rene Redzepi, que aparecia sempre no topo das listas de melhores do ano, mas imagino que a experiência seja parecida com a mostrada em O Menu. A comida ganha uma aura tão sagrada que as pessoas têm receio ao experimentar e orgasmos forjados após a refeição. Ninguém se opõe à genialidade de Slowik, a não ser Margot.

Ela é a única presente cujo nome não aparece na lista de convidados, é um contraponto a tudo o que se vive ali dentro: desconfia do blá-blá-blá conceitual antes de servir os pratos (um deles é um pão com acompanhamentos, mas sem o pão) e resiste à pretensão do chef de fazer daquela noite uma experiência única na vida das pessoas. Ela é uma intrusa que alerta para o fanatismo de uma corja de bajuladores que estão dispostos a dar a vida por um lugar à mesa.

Os mesmo personagens de O Menu poderiam contracenar com o jovem casal de modelos (Charlbi Dean e Harris Dickinson) que protagoniza a comédia mordaz, com toques de terror, Triângulo da Tristeza, vencedor do último Festival de Cannes. Aqui também acompanhamos os modos bizarros da elite no auge de sua performance. O diretor sueco Ruben Östlund, que já tinha mostrado essa veia satírica em The Square: A Arte da Discórdia (2017), não alivia a mão ao apresentar uma viagem de cruzeiro de cartão-postal que descamba para uma noite de terror.

Assim como Lars von Trier e Thomas Vinterberg de Festa de Família, para citar dois iconoclastas que fizeram parte do antigo movimento dinamarquês Dogma, Östlund descontrói a cada cena o mundo instagramável da elite, no qual tudo é aparentemente perfeito. Mas, aos poucos, notamos que não. Por trás dos filtros, há o lado mais vil do ser humano, que chafurda nos seus próprios pecados, na vaidade, na imoralidade e no desprezo dirigido a quem está abaixo do seu nível social.

Vemos em Triângulo da Tristeza o convívio de um magnata russo do ramo de fertilizantes, que gosta de dizer que “vende merda”, um casal de idosos britânicos que comanda uma empresa de explosivos e granadas, o capitão da embarcação que vive bêbado (atuação sensacional de Woody Harrelson) e o jovem casal que ganhou a viagem em troca de postagens nas redes sociais – ela é uma influenciadora com milhares de seguidores que constrói milimetricamente o cenário para suas poses no navio.

Charlbi Dean e Harris Dickinson no filme Triângulo da Tristeza

Enquanto isso, os funcionários do cruzeiro são cobrados minuto a minuto para atender com eficiência, simpatia e gentileza os passageiros, mesmo diante de solicitações esdrúxulas. No desfile da burguesia, o povo fica com o papel de estender o tapete.

Triângulo da Tristeza, assim como a série White Lotus, joga luz nos modos exóticos dos ricos. Provocativo e escatológico em algumas cenas, o sueco Ruben Östlund escancara a fenda social no microcosmo de um navio de cruzeiro, passeio que simboliza o que há de mais supérfluo e vazio no ser humano.

Vaidade, dancinhas, vazio e morte

De onde vem esse fetiche em observar o comportamento da elite? As pessoas gostam de ver na tela (do smartphone, TV, computador) como ela se veste, seus modos, a ostentação, a abundância, os hotéis caros onde se hospedam, as praias paradisíacas, os banquetes luxuosos. Gostam de assistir com um misto de desejo de fazer parte e de curiosidade.

As que pertencem ao topo da classe social ou aquelas que ascenderam adoram, por outro lado, exibir sua fortuna, as joias e colares pesados de brilhante, os passeios de helicóptero, a turma reunida no iate, seu novo trap, a viagem para Dubai, os camarões que se amontoam no prato. Há exceções, é bom que se diga.

Lá atrás, as propagandas, as novelas na TV, os filmes, os programas-tipo-Amaury-Júnior reforçavam essa ilusão do conto de fadas, delimitando uma fronteira intransponível aos meros mortais. Hoje, as redes sociais propagam isso com facilidade e velocidade, em volume muito maior, fazendo com que qualquer um sonhe em visitar aquele restaurante badalado, comprar uma roupa da Gucci, ou fazer uma viagem para Paris e postar dancinhas coreografadas com o fundo da torre Eiffel.

Acontece que essa imagem de parte da elite deslumbrada não se sustenta além do frame. Se olharmos mais de perto, encontramos uma realidade parva que beira o nonsense. Na ânsia de se exibir, com a preocupação de tornar exclusivo o acesso a esse mundo da fantasia, a tropa de elite vira um batalhão do Monty Python.

Aspecto que foi ressaltado por artistas como o espanhol Luis Buñuel e mais recentemente o italiano Paolo Sorrentino, de A Grande Beleza (2013), e o próprio Ruben Östlund, que se propuseram a examinar a elite de forma crítica, sem adoração, desmontando o cenário idílico. E, com isso, é inevitável que o resultado seja uma obra tragicômica.

Quando entrevistei para a Folha de S.Paulo o italiano Paolo Sorrentino, na época do lançamento de A Grande Beleza, que foi premiado no Festival de Veneza, o diretor disse uma frase que me marcou: “Há uma renúncia por parte dos personagens do filme em relação às coisas essenciais da vida, eles preferem o supérfluo”. Ali, além da soberba da classe endinheirada, ele questionava também a decadência dos intelectuais.

As lições de Buñuel que se conectam com o Menu

O Anjo Exterminador e O Discreto Charme da Burguesia, de Buñuel, são dois exemplos que lá nos anos 1970 já traziam esse frescor no olhar, dos quais me lembrei imediatamente quando vi O Menu. Não estou comparando a qualidade, afinal os filmes de Buñuel estão na prateleira das obras-primas, mas a abordagem de temas.

Em O Anjo Exterminador, de 1962, Buñuel faz um retrato macabro de nossos semelhantes, revelando o pior da natureza humana, ao concentrar o filme em uma sala de jantar onde os convidados se deleitam e, por alguma razão misteriosa, não conseguem sair dali. É como se estivessem presos numa jaula moderna se esbaldando no próprio pecado da avidez. Numa leitura ousada, o saudoso crítico Roger Ebert descreve os convidados como representantes da classe dominante da Espanha franquista.

Eles participam do jantar para se refestelar, para descobrir que não conseguiriam parar com aquilo. Enredaram-se no seu próprio beco sem saída. Cada vez mais ressentidos pelo desprezo que o mundo lá fora lhes devota, eles revelam suas piores tendências.

(Roger Ebert)

Uma leitura parecida pode ser aplicada a O Menu. Vejo como uma comédia involuntária cujo impacto é o de um soco no estômago. As boas maneiras à mesa descambam para a violência e morte à medida que os segredos de cada personagem vêm à tona. Os modos agressivos contrastam com a exuberância do ambiente.

No clássico O Discreto Charme da Burguesia, de 1972, Buñuel aponta para a decadência da aristocracia europeia, mais uma vez, usando o microcosmo de um jantar para representar a igreja, os militares, os políticos, adotando, como de praxe, toques surrealistas à história. Aos poucos, descobrimos por trás de cada pessoa vícios, vaidades, crimes.

A prisão de uma sociedade que convive no mundo de aparências, que aceita desvios éticos e morais em nome da manutenção do status quo. O importante é estar in. Por isso a dificuldade de abrir mão das benesses, divergir e pisar fora do ambiente onde os personagens de O Menu e Triângulo da Tristeza estão confinados.

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