
Quando foram ao ar os primeiros episódios de The Last of Us, fiquei interessado em saber o que havia por trás da reação entusiasmada do público e de críticos sobre a nova série da HBO, cuja primeira temporada ainda não foi finalizada. Os episódios são liberados semana a semana, aos domingos, no streaming.
Afinal, TLOU (conhecida assim pelos fãs do game que a baseou) foi um sucesso estrondoso na sua estreia, em 15 de janeiro de 2023, batendo produções gigantes como Game of Thrones e A Casa do Dragão, com 837 milhões de minutos assistidos na primeira semana, de acordo com dados do instituto Nielsen. Um novo recorde de audiência da HBO! O que, sem muitas dúvidas, aponta em direção à confirmação de uma segunda temporada.
Em linhas gerais, a história gira em torno de um pai, Joel, que perde a filha da noite para o dia quando uma infecção generalizada, causada pelo fungo Cordyceps, atinge os moradores dos Estados Unidos. Num cenário de devastação, no qual convivem os Infectados, grupos rebeldes e um governo autoritário responsável por tomar conta das Zonas de Quarentena, sobreviventes lutam contra criaturas repugnantes.
[Vai ser inevitável revelar alguns spoilers a partir daqui]
Resolvi assistir ao primeiro episódio e demorei pra engrenar. De imediato, dava para ver que havia uma produção cuidadosa dos ambientes, um mistério crescente que causou a destruição da vida como a entendemos, criaturas mutantes (asquerosas e terrivelmente assustadoras, o que é um ponto positivo) que foram infectadas por um fungo avassalador e um trauma do pai que perde a filha logo de cara.
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Vi e fiquei pensando no que vi. Não era mais uma produção que bebia na fonte dos filmes apocalípticos de zumbi do saudoso diretor George Romero (1940-2017)? Entendi depois que é um pecado, aos olhos dos fãs do game, chamar os Infectados de The Last of Us de zumbis. Ok, mas não há como negar: eles se mexem, andam, gemem e mordem pessoas indefesas exatamente como os mortos-vivos eternizados no cinema.
Então, por que tanto alvoroço em torno da série?
Comecei a pesquisar mais a fundo e descobri que existe uma legião de amantes do game The Last of Us, jogo desenvolvido por Bruce Straley e Neil Druckmann em 2013 para o PlayStation 3, que se manifestam nas redes sociais como torcedores enlouquecidos de um time de futebol. Quando aparece uma crítica mais ácida à série, o que me parece bem normal numa democracia, os mesmos torcedores vociferam como se o time tivesse sido injustamente eliminado de uma competição.
O papel da crítica em meio aos gladiadores digitais
Acompanhei, por exemplo, uma opinião dada por uma jornalista do site Omelete questionando alguns aspectos da versão para TV de TLOU. Ela foi massacrada sem dó! A ponto de o portal, especialista na cobertura de cultura pop (o que acentuou ainda mais a reação raivosa dos fãs), soltar uma nota em vídeo dizendo que não aceitaria intimidação e ameaças a seus profissionais.
Não entro no mérito do que foi discutido sobre a série, mas é óbvio que tal episódio de intolerância deve ser coibido. Sabemos o poder da rede digital contra um alvo que resolve mexer no vespeiro. A massa se multiplica, ganhando volume e voz, e grita em uníssono até derrotar (de preferência, cancelar) o adversário em comum. Hoje em dia, tudo vira uma guerra de ódio, seja na política, no futebol ou no campo cultural.
E é exatamente o que tem virado a discussão entre admiradores e detratores de The Last of Us. O que menos importa, nesse caso, é a discussão sobre o conteúdo, a série em si. A briga digital é desvirtuada rapidamente em uma terra sem lei, na qual pistoleiros agem livremente, atirando para todo lado.
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Isso tudo me fez pensar, com certo desânimo, no papel da crítica atualmente. Ao longo de mais de 10 anos, fiz cobertura e escrevi, de forma opinativa ou no formato de reportagem, sobre cinema e artes em geral. Eu acompanhava e me inspirava em grandes formadores de opinião cultural, como Pauline Kael, Serge Daney e Inácio Araújo.
Eles tinham o poder de identificar novos movimentos artísticos, usar sua bagagem para uma análise mais contextualizada da obra e tinham, acima de tudo, coragem e autenticidade para escrever sem temer reações. E, inevitavelmente, o contragolpe vinha, mas ali se instaurava um debate sadio de ideias.
Aos poucos, o espaço no jornal dado às críticas foi rareando até sumir, dando lugar a estrelas de cotação, anúncios ou opiniões que mais eram uma orientação de consumo. Natural que tenha esse tipo de evolução quando notamos como o entretenimento engoliu qualquer manifestação mais iconoclasta e combativa da realidade. Natural e, a meu ver, triste.

Triste porque não temos/aceitamos mais opiniões contrárias às nossas. Vivemos em bolhas que se retroalimentam de vieses que corroboram nossa própria visão de mundo, graças em grande parte ao trabalho dos algoritmos e da inteligência artificial. Quando, ocasionalmente, elas surgem, são desprezadas junto com o autor que as escreveu.
Estamos ficando mais burros, não tenho dúvida, assim como o boneco de madeira criado por Gepeto. Consumimos cultura como sorvete. Tudo se resume a um gosto simples, superficial e artificial: é bom ou ruim. No caso de The Last of Us, é incrível ou uma merda.
No lugar do roteirista, o estrategista de marketing
Nos tornamos ventríloquos e cobaias da poderosa indústria de streaming, que calcula um enredo com base no cifrão, em testes A e B de marketing e muda o rumo de uma história, mesmo a contragosto do seu autor, por intervenção do estrategista de marketing, não do roteirista. Por isso, somos impactados, seja na Netflix, Amazon Prime ou HBO Max, por fórmulas pré-fabricadas para agradar determinado público, sobretudo os adolescentes, grandes consumidores de cultura pop. Perceba como as tramas se parecem cada vez mais umas com as outras, como padrões que dão certo em termos comerciais (ou seja, dão lucro) são repetidos à exaustão.
Não há espaço para vozes dissonantes, seja de quem cria histórias, seja de quem as consome.
The Last of Us, assim como milhares de outras séries e filmes, caminha na esteira dessa lógica. Foi fabricado para um público específico, com uma estratégia de marketing direcionada aos amantes do game que deu origem à série, e com a preocupação de ser fiel à história (caso contrário, os produtores seriam tachados de hereges e morreriam queimados na fogueira).
Por fim, minha singela opinião sobre the last of us
Deixei o que menos importa para o final: a minha opinião sobre The Last of Us.
Fiquei pensando em outros filmes que foram adaptados de games, como Tomb Raider, Sonic, Angry Birds, Prince of Persia, Mortal Kombat… difícil pinçar um que seja um primor de qualidade.
Acho que The Last of Us entrega mais para o espectador em termos de atmosfera, efeitos visuais, construção de ambientes e os aflitivos zumbis-que-não-são-zumbis. Embora considere o enredo frágil, e a construção de personagens, superficial. Com algumas boas exceções, eles são rasos.
A fórmula de cada episódio se resume à missão de cada fase de um video game, o que faz sentido quando estamos jogando, mas não tanto quando estamos com o olhar de espectador: os personagens estão ali para cumprir missões. São, em geral, frios e atuam como robôs designados para um objetivo final.
Nesse sentido, o bonito terceiro episódio, que conta a relação de Bill e Frank, destoa dos demais. Assim como a amizade dos pequenos Ellie e Sam no quinto episódio, mesmo com o trágico fim.
Ali consegui sentir emoção e me conectar com a dor dos personagens. Nos demais, a versão série de TLOU funciona como um filme de ação, com tiros, explosões e perseguições, mas sem alma. Pelo menos até agora — assisti até o sexto episódio, que são os que estão disponíveis na HBO.
Acho que uma adaptação deve funcionar por si só, sem a necessidade de o espectador ter lido, visto ou jogado a obra original. E pode ser até melhor do que o original, caso, por exemplo, de alguns filmes do Kubrick, como O Iluminado.
The Last of Us me lembrou de um grande filme do diretor John Hillcoat, A Estrada, que foi adaptado da obra do escritor Cormac McCarthy. Nele, pai e filho vagam por um mundo devastado numa realidade distópica. Um enredo bem parecido que ganha força nos mínimos detalhes da relação, o que não vi, por enquanto, em TLOU.
Sensacional a crítica.Tenho a mesma sensação em termos gerais,apesar de não estar assistindo The last of Us..
Grande, Cerso, obrigado pela visita. Pois é, a intolerância anda solta por aí