Fahrenheit 451, o centenário de Bradbury e minha paixão pelos livros

Farenheit 451 na adaptação de Truffaut para os cinemas

Em nove dias, Ray Bradbury escreveu a primeira versão do clássico da ficção científica Fahrenheit 451 no porão da biblioteca da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Ele teve que ser rápido para não gastar tanto dinheiro, pois alugava a dez centavos uma máquina de escrever Remington ou Underwood por meia hora.

Você enfiava a moeda, o relógio tiquetaqueava feito louco, e você datilografava furiosamente para terminar antes que esgotasse o tempo

O próprio Bradbury conta sobre sua corrida contra o tempo para escrever Fahrenheit 451

Publicado em 1953, o livro é uma ode aos livros. Em um futuro distópico, Bradbury narra a atuação de um corpo de bombeiros, em uma cidade dos EUA, cuja principal missão é atear fogo nas casas para queimar qualquer história impressa. Guardar livros é uma heresia das mais graves no universo criado pelo autor. Eles seriam uma ameaça para uma sociedade que vive à base de pílulas narcotizantes e da interação constante com a TV na sala.

Os livros, na visão dos bombeiros transviados de Bradbury, fazem a população pensar demais, como se tivessem o poder de espalhar o senso crítico pela comunidade. Por isso, a memória é apagada num esforço constante de manter os moradores da cidadezinha sob controle, podando qualquer tipo de inquietação. No lugar deles, a televisão fornece o entretenimento necessário, com uma programação de novelas interativas e fúteis.

+ A literatura bruta de Ana Paula Maia

Em regimes totalitários, como o nazismo, a gente vê exatamente esse tipo de opressão: abasteça a população com qualquer passatempo para compor uma população obediente, que não questiona as regras impostas e sente-se satisfeita com o fácil prazer cotidiano. É a fórmula que Adorno, Horkheimer e a turma de Frankfurt chamou de indústria cultural, ou seja, a cultura a serviço da dominação.

Eu reli Fahrenheit 451 por conta da comemoração do centenário de Bradbury, completado neste ano, e para tentar entender por que os livros fascinam e causam tanto temor ao mesmo tempo. Eu estou no primeiro time: pra mim, é o melhor meio de ganhar conhecimento, exercitar a mente e acalmar o espírito. Não sei bem qual é esse poder e como os livros afetam, fisiologicamente, o ser humano.

Os livros tiveram papel muito importante na minha formação. Aprendi — e continuo aprendendo — um pouco sobre psicologia com eles, no mergulho em personagens, sobre história, outras culturas, política. Me serviram para entender o mundo com mais clareza de forma geral e, acima de tudo, a me fazer companhia nos momentos de solidão. Com eles, ganhei espírito crítico, justamente o que os bombeiros de Bradbury gostariam de evitar. Me sinto mais à vontade para questionar o mundo e, ao mesmo tempo, mais resistente para engolir qualquer mensagem. Não sei se trazem felicidade no sentido mais comum do termo, mas me acalmam e me deixam mais sereno.

Penso em como o cinema, por exemplo, nos assalta com uma explosão sensorial (sons, imagens, falas, cores). Em geral, entrega tudo de uma vez. Enquanto os livros são menos intrusivos, precisamos exercitar a mente para compor o conteúdo, muitas vezes à nossa maneira. Pra mim sempre foi fascinante pensar que extraímos de simples letras combinadas num papel um universo tão fantástico. Nos obriga a olhar mais no detalhe, a construir uma reflexão com mais calma.

Assim como Bradbury, Borges também vivia em bibliotecas, num mundo à parte. Eles entendiam a riqueza disponível num espaço como esse. Milhares de histórias escritas ao longo de séculos e dispostas em prateleiras. Sim, a internet também possui um acervo infinito de conteúdo, mas num universo bem mais raso, superficial, que serve mais como material de consulta.

Aos poucos, Montag, um dos bombeiros que queimam livros em Fahrenheit 451, entra em crise existencial ao notar a banalidade da vida que o rodeia. Não consegue mais exercer sua profissão e passa a simpatizar com rebeldes que teimam em armazenar na cabeça o conteúdo das obras. Na sua própria casa, a imagem da esposa que fala sem parar com as televisões que ocupam paredes imensas e vive à base de pílulas é um reflexo da derrocada da sua vida.

Bradbury mal sabia o quão atual, mesmo depois de 50 anos, o seu relato seria. Coloque na sua narrativa, além das onipresentes TVs, os smartphones e os antidepressivos da nossa época e temos um resultado muito parecido. Pessoas vivem distraídas com pequenos prazeres, não gostam de pensar, desprezam os livros, estão mais ansiosas, são dependentes de uma felicidade em formato de comprimido e muitas delas correm desnorteadas (e condicionadas) como ratinhos de laboratório em volta do próprio rabo. Com a ilusória sensação de que são vitoriosos, de que estão no comando na própria vida.

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