
O que causa maior estranhamento na prosa mordaz e distópica do escritor Nana Kwame Adjei-Brenyah é o fato de sua narrativa violenta despertar mais vazio do que raiva. A violência exagerada nos contos de seu livro de estreia, Friday Black, tem um efeito meio pop, meio triste. Como se um personagem melancólico ingressasse por engano em um filme do Tarantino.
Os males do mundo moderno, sobretudo aqueles que regem o sistema econômico capitalista, são os grandes vilões de Friday Black, o livro curto, composto de 12 contos, e potente escrito por Adjei-Brenyah em 2018 e publicado no Brasil pela editora Fósforo no início de 2023.
Tema de três contos, o consumismo compulsivo de pessoas que correm como zumbis sedentos em lojas de departamento resume o sentimento do mundo contemporâneo (falo aqui do lado Ocidental). A assepsia estética dessas imensas lojas contrasta com o sangue que esvai de consumidores que se atropelam e se matam em busca da melhor oferta.
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Onde o Rei do Gelo, o funcionário que sabe ler com exatidão as expressões e necessidades dos consumidores antes mesmo de eles soltarem uma palavra, dita as regras na temporada de inverno. É o cara-que-mais-vende transformado no herói improvável dentro de um shopping. O cara que manipula com uma conversinha mole (ou marketing eficiente) a esposa ao saber que o marido que a acompanha precisa de uma nova jaqueta @PoleFace, que tendo a pensar que seja uma sátira às caríssimas roupas da NorthFace.

Todos estão ali se espremendo para aproveitar a última oferta, com medo de que o estoque acabe, com receio de perder algo que eles, há poucos minutos, mal sabiam que desejavam tanto.
Nossa loja é um grande depósito com cabides e araras. Temos roupas popularizadas por rappers e skatistas. Famílias como essa são o motivo de eu estar no ranking nacional: duas crianças, ainda felizes o bastante em fazer compras com a família, brancos. Típico sonho americano, ou quase.
Trecho do conto Como Vender uma Jaqueta, segundo o Rei do Gelo
O escritor americano de origem ganesa Nana Kwame Adjei-Brenyah sabe do que está falando. Já foi um desses vendedores de grandes marcas que são cobrados por metas insanas. Com base na realidade, seu olhar é perspicaz e finamente irônico. Acrescenta elementos sobrenaturais como se fossem parte de um documentário, como parte inerente da própria realidade.
Friday Black: o racismo e a sociedade do espetáculo sem noção
Entre as pequenas histórias de Friday Black, Os Cinco de Finkelstein abre o livro apontando para um alvo certeiro: como a (in)justiça nos EUA, embora pudesse ser no Brasil, pesa contra os negros americanos, que são vítimas históricas de um sistema racista e enviesado. É um relato duro, real e fantástico na mesma medida.
Os Cinco do título são meninos e meninas negras que foram decapitados com o uso de uma motosserra na frente de uma biblioteca na Carolina do Sul, sendo que supostamente o assassino teria agido por medo de sua família ser atacada.
Apesar de todas as evidências contra o acusado, ele é poupado pelo júri. Afinal, o caso não se trata de um assassinato, nas palavras do advogado que defende o homem branco, “mas do direito que um homem americano tem de proteger a sua vida e a vida de sua linda bebezinha e de seu belo filho”.
Outros contos, como o genial Zimmerlândia, transformam atos violentos em entretenimento em meio a um parque de diversões, onde homens e mulheres resolvem problemas e extravasam a dor e a raiva espancando personagens que estão ali em cena para serem espancados em um “ambiente controlado”.
Como pontuou o crítico Guilherme Pavarin na revista Quatro Cinco Um, Adjei-Brenyah constrói histórias de horror que soam plausíveis e familiares. “É a partir de imagens absurdas e hiperbólicas que ele busca tratar de temas urgentes como a segregação racial, a violência como moeda de troca, o consumismo identitário e a alienação da própria subjetividade”, escreve Pavarin.
Friday Black tem o frescor de quem consegue captar a insanidade do mundo atual em pequenos detalhes, um Black Mirror mais contundente, inteligente e político.
